O acórdão do Processo Face Oculta podia ser o guião de um filme sobre a sociedade portuguesa actual. Dele emergem casos e figuras que podemos encontrar em As Farpas onde Ramalho e Eça retratam o Portugal oitocentista.
Agora que João Botelho nos traz a versão cinematográfica de Os Maias, podemos pedir-lhe que faça do acórdão do Face Oculta o guião do um novo filme sobre o Portugal contemporâneo. Esse filme, podia, por exemplo, começar pelo fim:
“Arguido Manuel Godinho:
“(…) 11.º – Em data não concretamente apurada, mas anterior a 2002, Manuel Godinho gizou um plano tendo por finalidade o favorecimento das empresas por si geridas nas suas relações comerciais com empresas públicas, de capitais públicos, com participação maioritária de capital público, concessionárias de serviços públicos e empresas privadas, designadamente nos concursos e nas consultas públicas de adjudicação e, bem assim, na adjudicação directa de contratos de compra e venda e de prestação de serviços na área dos resíduos promovidos por aquelas empresas, através da promessa e da entrega de vantagens patrimoniais e/ou não patrimoniais a titulares de cargos políticos, governativos e a indivíduos que exerciam funções de poder, detinham capacidade pessoal de decisão, com capacidade para influenciar determinantemente o decisor e com acesso a informação privilegiada. (…)”
“Tudo ponderado, decide-se fixar a pena única em 17 (dezassete) anos e 6 (seis) meses de prisão.” (Pág 2643 do Acórdão)”
“(…) Da situação individual
2307.º – Manuel Godinho é oriundo de um agregado familiar de condição socioeconómica humilde, sendo o terceiro de seis irmãos. O pai dedicava-se ao fabrico e venda de cordas, assim como ao comércio de produtos diversos, enquanto a mãe assumia as tarefas domésticas e colaborava na actividade desenvolvida na oficina de cordoaria.
2308.º- O progenitor, face à sua actividade comercial, passava períodos, mais ou menos longos, fora de casa, sendo a progenitora a pessoa mais próxima e responsável pelo processo educativo dos filhos.
2309.º- No seio da sua família de origem, Manuel Godinho beneficiou de condições afectivas ajustadas, assim como de modelos educacionais construtivos e baseados no valor do trabalho como meio de bem-estar pessoal e social.
2310.º – A família apresentava algumas limitações materiais, as quais eram superadas com o apoio de todos os elementos do agregado.
2311.º – Em idade considerada adequada Manuel Godinho inseriu-se no sistema de ensino, concluindo o 4.° ano de escolaridade. Contudo, face aos condicionalismos financeiros existentes, este, assim como os irmãos, desde cedo começou a trabalhar na oficina de cordoaria do pai, actividade que repartiam com os afazeres escolares.
2312.º – Após abandonar a escola, com cerca de 10 anos de idade, passou a dedicar-se inteiramente à laboração na empresa familiar de fabricação de cordas, onde se manteve até aos 22 anos.
2313.º – Nessa altura Manuel Godinho emigrou para a Venezuela, tentando desta forma conseguir proventos financeiros mais favoráveis, o que, no entanto, não se veio a concretizar, tendo, passado alguns meses, regressado a Portugal.
2314.º – Já em Portugal, Manuel Godinho iniciou actividade comercial de venda de batatas, (…), actividade em que conseguiu ter sucesso e, (…) a possibilidade de experimentar outras áreas, nomeadamente no comércio de ferro, fundando uma das empresas que ainda hoje possui, situada em Ovar.
2315.º – Gradualmente, Manuel Godinho foi conseguindo obter sucesso nesta sua actividade laboral, promovendo o desejo de crescer em termos empresariais e, consequentemente, expandir o negócio para outros países, mantendo-se, todavia, a residir em Portugal.
2316.º – Com 20 anos contraiu matrimónio, vindo desta união a nascer dois filhos, presentemente autonomizados.
(…) 2318.º – Em termos profissionais, Manuel Godinho apresentava actividade empresarial intensa (comércio de ferro, inertes, obras públicas, etc), com índices de sucesso significativos, o que lhe proporcionava um estilo de vida desafogado, entrando entretanto em decréscimo as receitas das empresas que possui.
2319.º- Como receitas fixas mensais usufruía de um montante próximo dos 2.400,00€, proveniente do seu vencimento e da mulher, acrescendo a este valor os rendimentos resultantes de investimentos financeiros e de participação nos lucros das empresas.
2320.º -Manuel Godinho beneficia de uma imagem favorável, sendo considerado como pessoa afável e disponível para ouvir, como, dentro dos possíveis, para prestar apoio financeiro, concretamente a entidades privadas de cariz social e/ou desportivo. Igualmente é valorizado o seu empreendedorismo e capacidade de trabalho. (…)”
(excertos extraídos do acórdão do Tribunal Colectivo de Aveiro)
O “guião” continua com a descrição de outros protagonistas sem deixar de contemplar a descrição dos processos objectivos e subjectivos através dos quais o colectivo de juízes fundou a sua convicção e decidiu as penas.
O filme podia chamar-se: «Ascenção e queda de um semi-analfabeto que corrompeu meio-mundo e serviu à justiça para mostrar que existe”
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Concordo consigo, J. Madeira. Mas vale a pena ler o acórdão.
António Marques Pinto, leia bem os excertos que seleccionei do acórdão. Eles mostram várias coisas: que a Justiça é forte com os fracos. Que o facto de ser semi-analfabeto não impediu o sucesso das suas empresas e a influência em pessoas poderosas. Godinho teve uma pena tão pesada por o seu processo ter envolvido políticos. É a minha convicção ao ler o acórdão. O sentido do meu post é contrário à interpretação que faz dele.
Este sucateiro tem a origem e o perfil indicados para o poder judicial mostrar quem manda. Já na Quinta da Marinha e redondezas nem os raios caem, numa trovoada. É sabido que nada acontece aos banqueiros….
No texto e na “sugestão” de título para um filme, a Estrela Serrano indigna-se especialmente com o facto do homem ser semi-analfabeto. Lamento esse tique classista da sua parte. E lembro que as personalidades mais prestigiadas da nossa História por razões de competência, não eram engenheiros nem doutores nem pós-doutores… E não estou a pensar só em Amália e Eusébio.
Sobre este caso muita tinta há-de correr, até agora assistimos ao primeiro acto!
Declaração prévia; não assisti ou li o acordão do julgamento! Assim, pelas notícias
passadas na comunicação social, sejam as tais fugas, as famosas escutas, o aten-
tado contra o Estado de Direito … ganhei a convicção que a operação “face oculta”
mais não foi de que uma “vingança” de alguém muito “ferido” por um antigo diretor
da PJ nomeado por um ministro do PS, aproveitada por quem gostaria que o seu
nome fosse conhecido, para ajudar a vender uns livros de ficção escritos nas horas
vagas do ministério público de Aveiro! Quanto às convicções dos juízes será assun-
to para as instâncias superiores … pelas mesmas razões, muitos milhares de empre-
sários poderão vir a ser condenados … no meu tempo as canetas eram de ouro!!!