A “linguagem corporal da arguida” durante o interrogatório judicial e o jornalismo do “ver para crer”.

No programa Expresso da Meia-Noite  da passada sexta-feira, dedicado à Operação Marquês, uma das jornalistas da SIC responsável pela divulgação dos interrogatórios judiciais usou o exemplo da pergunta do procurador à mulher de Carlos Santos Silva (CSS), arguida no processo,  sobre o motivo que levou o marido a comprar um grande número de livros de José Sócrates, ao que ela respondeu que foi “para agradar ao amigo”.

Segundo a jornalista, não basta ler  a resposta da arguida, é preciso ver a sua “linguagem corporal, muito expressiva” e “o tom de voz” e por isso é  “importante mostrar estes interrogatórios”.  “Era preciso vê-la (à mulher de CSS) ali…para perceber que a ligação entre  José Sócrates e CSS não era muito bem vista pela mulher deste”, disse a jornalista da SIC.

A divulgação dos interrogatórios já foi condenada por todas as autoridades judiciais que se pronunciaram sobre o caso. Porém, do lado do jornalismo não se ouviram argumentos pró ou contra a divulgação, para além do já estafado “interesse público” nunca aprofundado nem justificado. E, no entanto, é importante reflectir sobre o que significa a divulgação de interrogatórios judiciais. Nada melhor do que saber o que pensam sobre isso os jornalistas, em particular, os que assumiram a responsabilidade da divulgação de material proibido.

Se o argumento da jornalista da SIC passar a valer como bom,  para acreditarmos nas noticias teremos de “ver para crer”, como  S. Tomé.  Se aplicarmos esse princípio à informação em geral, os próprios jornalistas não estão em condições de apreender o significado do que relatam, sem verem e ouvirem presencialmente  a “linguagem corporal” e o  “tom de voz” dos protagonistas.

O argumento da jornalista seria apenas caricato se não revelasse algo mais grave e profundo que consiste na confusão entre o papel do jornalismo e o das autoridades judiciais. Não cabe ao jornalista provar a “verdade” ou “inverdade” de declarações de arguidos em interrogatórios judiciais. Esse é o papel do juiz para o qual a “verdade” é aquela que é provada em tribunal e não aquela que resulta do “tom de voz” e da “linguagem corporal” dos arguidos em interrogatórios.

Só uma deficiente compreensão do que é o jornalismo pode justificar que jornalistas de prestígio usem peças processuais construídas segundo as regras e a lógica do sistema judicial (como sejam as perguntas dos procuradores aos arguidos) como se fossem  peças resultantes de investigação  jornalística. O facto de pegarem nessas peças e as “remontarem” segundo o sentido que pretendem atribuir-lhe constitui uma mistificação e uma violação de regras éticas e deontológicas.

Não interessa para o efeito saber se os arguidos são culpados dos crimes de que estão acusados. Para isso existem os tribunais. Sejam quem forem os responsáveis pela divulgação dos interrogatórios eles desprestigiam o jornalismo e a justiça. Custa até a crer que algum membro da equipa de investigação – procuradores e investigadores policiais – tenha colaborado na divulgação, não apenas pelo crime que ela representa mas também porque as perguntas e a abordagem feita aos arguidos é de uma pobreza confrangedora assemelhando-se  em alguns momentos a “conversa de chacha”.

 

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9 respostas a A “linguagem corporal da arguida” durante o interrogatório judicial e o jornalismo do “ver para crer”.

  1. que tal se parasse de enviar comentários repetidos para o meu blog? não tem mais nada que fazer? cada vez que vou ao blog vejo comentários seus que já nem leio….

  2. Arthur diz:

    Estrela Serrano, é este o comentário em tons de azul e branco (e só assim se compreende a sua “resposta” posteror, que literariamente eu grafitei como que vinda Além). Abril 26, 2018 às 17:47, in situ, ia a revolução a meio e o povo continuava na rua…

    _____

    Arthur diz:
    O seu comentário aguarda moderação.
    Abril 26, 2018 às 17:47
    «Porém, do lado do jornalismo não se ouviram argumentos pró ou contra a divulgação, para além do já estafado “interesse público” nunca aprofundado nem justificado.», Estrela Serrano é esforçar-se um bocado e continuar a procurar (o artigo é do Luciano Alvarez e surgiu no dia 24 de Abril, ressalvo).

    «A presidente do Conselho de Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas, São José Almeida, defende que as reportagens que revelaram na passada semana imagens dos interrogatórios a José Sócrates e a outros arguidos e testemunhas no processo Marquês, e dos inquéritos do universo GES, são “legítimas” do ponto de vista jornalístico.

    “As gravações [dos interrogatórios] são oficiais e chegaram à mão dos jornalistas. Ainda que haja aspectos que possam suscitar dúvidas por assumirem contornos que raiam o voyeurismo, é inegável que as reportagens divulgaram aspectos do processo de relevante interesse público e são, por isso, legítimas”, afirmou a também jornalista do PÚBLICO, sobre as imagens divulgadas pela SIC, primeiro, e depois pela CMTV.

    São José Almeida frisa que toma esta posição como “presidente do CD, mas a título pessoal”, justificando que o CD não tomou posição sobre esta matéria “porque não foi a primeira vez que esta situação aconteceu”. A jornalista lembra o caso das audições no processo dos Vistos Gold, em que foram mostradas pela CMTV imagens das audições a Miguel Macedo, ex-ministro da Administração Interna, e de Manuel Palos, ex-director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

    “É importante que este debate se faça, mas a obrigação e o compromisso dos jornalistas é com o público e com a sociedade. E têm o dever de revelar informações verídicas como as que foram mostradas”, acrescenta a presidente do CD.

    São José Almeida defende ainda que informações como as que foram divulgadas são “de relevante interesse público”. “No cumprimento da sua obrigação e compromisso com a sociedade o dever de informar sobrepõem-se sempre para os jornalistas aos direitos de imagem e até a leis como a do segredo de justiça, que nem é o caso nesta situação”, afirmou.»

    […]

    No P. online, hoje.

  3. Desculpe, não percebi o que quer dizer……”censurado” por quem? não pensa certamente que eu não tenha mais nada que fazer do que andar na net …quando vejo os comentários publico-os!

  4. Arthur diz:

    Estrela Serrano, como o meu comentário está censurado não se percebe a sua voz vinda do Além e não lhe poderei explicar que é, exactamente, isto o que se depreende do meu parêntesis.

    Eu jogo limpo, a não ser que me equivoque desafortunadamente:
    «(o artigo é do Luciano Alvarez e surgiu no dia 24 de Abril, ressalvo).», cito.

  5. Arthur diz:

    Estrela Serrano, como o meu comentário está censurado não se percebe a sua voz vinda do Além e não lhe poderei explicar que é, exactamente, isto o que se depreende do meu parêntesis.
    Eu jogo limpo, a não ser que me equivoque desafortunadamente:
    «(o artigo é do Luciano Alvarez e surgiu no dia 24 de Abril, ressalvo).», cito.

  6. O meu post é anterior às declarações da presidente do Sindicato dos jornalistas.

  7. Arthur diz:

    «Porém, do lado do jornalismo não se ouviram argumentos pró ou contra a divulgação, para além do já estafado “interesse público” nunca aprofundado nem justificado.», Estrela Serrano é esforçar-se um bocado e continuar a procurar (o artigo é do Luciano Alvarez e surgiu no dia 24 de Abril, ressalvo).

    «A presidente do Conselho de Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalistas, São José Almeida, defende que as reportagens que revelaram na passada semana imagens dos interrogatórios a José Sócrates e a outros arguidos e testemunhas no processo Marquês, e dos inquéritos do universo GES, são “legítimas” do ponto de vista jornalístico.

    “As gravações [dos interrogatórios] são oficiais e chegaram à mão dos jornalistas. Ainda que haja aspectos que possam suscitar dúvidas por assumirem contornos que raiam o voyeurismo, é inegável que as reportagens divulgaram aspectos do processo de relevante interesse público e são, por isso, legítimas”, afirmou a também jornalista do PÚBLICO, sobre as imagens divulgadas pela SIC, primeiro, e depois pela CMTV.

    São José Almeida frisa que toma esta posição como “presidente do CD, mas a título pessoal”, justificando que o CD não tomou posição sobre esta matéria “porque não foi a primeira vez que esta situação aconteceu”. A jornalista lembra o caso das audições no processo dos Vistos Gold, em que foram mostradas pela CMTV imagens das audições a Miguel Macedo, ex-ministro da Administração Interna, e de Manuel Palos, ex-director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

    “É importante que este debate se faça, mas a obrigação e o compromisso dos jornalistas é com o público e com a sociedade. E têm o dever de revelar informações verídicas como as que foram mostradas”, acrescenta a presidente do CD.

    São José Almeida defende ainda que informações como as que foram divulgadas são “de relevante interesse público”. “No cumprimento da sua obrigação e compromisso com a sociedade o dever de informar sobrepõem-se sempre para os jornalistas aos direitos de imagem e até a leis como a do segredo de justiça, que nem é o caso nesta situação”, afirmou.»

    […]

    No P. online, hoje.

  8. Jorge Fernando Pinheiro diz:

    Muito bem. Que nunca lhe falte a vontade de emitir a sua opinião.

  9. J. Madeira diz:

    Pior do que a jornalista, foi o “expert” L. Rosa avançar com a necessidade de se constituir
    uma assessoria para elucidar os juízes na formação das convicções, dado não haver pro-
    vas factuais para várias das ilações montadas para assacar culpas aos arguidos!!!

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