Um mundo ao “estilo Assange”

Bunker do WikiLeaks - Local subterrâneo abriga servidores do site - AFP

Num artigo intitulado Hacktivismo e mudança, publicado no Correio da Manhã,  Paulo Querido equaciona algumas perguntas interessantes que me suscitam as seguintes (tentativas) de resposta.

Escreve Paulo Querido:

“Só os grandes assuntos são fracturantes a este ponto. Assange é um herói ou um terrorista? O WikiLeaks é jornalismo ou não? Sabotou a diplomacia dos EUA, ou aquela não cuidou dos seus segredos? No limite, a dicotomia resume-se a transparência contra opacidade. Deve a governação ser cristalina ou aceita-se que o segredo é essencial à gestão dos Estados?”

As minhas respostas:

Assange é  um herói ou  um terrorista?

Assange não é nem um herói nem um terrorista. Talvez um fanático ou um sonhador, alguém que julga poder endireitar o mundo segundo um modelo que ele considera ideal, em que tudo deve e pode ser conhecido ou estar acessível a todos. O “feito” de Assange não chega para o qualificar como herói, tão pouco como terrorista. Em defesa da  “causa” que parece prosseguir – uma transparência total e sem regras – Assange funciona como um intermediário, limitando-se (ao que se conhece) a libertar informação que outro(s) lhe passam. A sua acção em prol da “transparência” consiste em tornar acessível essa informação, através de meios que ele  selecciona de acordo com os seus  próprios interesses.  Assange depende de insiders nas organizações que persegue, porque só por si não tem possibilidade de chegar à origem da informação que divulga.

O WikiLeaks é jornalismo ou não?

O WikiLeaks não é jornalismo. Desde logo, porque os seus responsáveis não têm acesso às fontes primárias da informação que divulgam, não podendo cruzá-la, fazer o contraditório, investigar, editar. O WikiLeaks publica informação “em bruto”, tal como lhe chega, limita-se a ser um depósito de materiais que outros consideram de interesse para os fins que perseguem. A primeira “triagem” nem sequer é feita pelo WikiLeaks mas sim por quem lhe fornece a informação. Os interesses do Wikileaks podem, aliás, não coincidir com os da(s) sua(s) fonte(s). Nestas, pode haver intuitos de vingança, represália, ódio, etc. Uma fonte é sempre parte interessada e a(s) fonte(s) do WikiLeaks, tal como o próprio WikiLeaks, não fogem à regra. Os jornais  seleccionados pelo WikiLeaks, independentemente do  interesse público que possam atribuir à informação que lhes chega, são para o WikiLeaks  instrumento da sua estratégia, como acontece aos jornalistas quando fontes desconhecidas lhes fazem chegar informação que eles não podem confirmar. O WikiLeaks necessita deles para ganhar visibilidade. O que distingue (ou devia distinguir) o jornalismo face ao WikiLeaks é que o jornalismo tem regras, não é um mero receptáculo de “segredos” ou de documentos que outros “descobrem” por  métodos desconhecidos e no mínimo opacos (o que não deixa de ser irónico sendo feito em nome da “transparência”), quase sempre  ilícitos. O jornalismo não é (não deve ser) instrumento de estratégias a favor ou contra governos ou instituições.  

O WikiLeaks sabotou a diplomacia dos EUA, ou aquela não cuidou dos seus segredos?

Quem sabotou a diplomacia dos EUA foi a fonte do WikiLeaks. E sabotou porque a diplomacia  (ou seja lá quem for) se colocou a jeito, não tendo sido capaz de proteger algo que se destinava a ficar fora do domínio público até que a História um dia o viesse a revelar.  O Watergate não serviu de lição. Falta, porém, conhecer as razões profundas dos “gargantas fundas” do WikiLeaks.

Deve a governação ser cristalina ou aceita-se que o segredo é essencial à gestão dos Estados?

As duas partes da pergunta não são incompatíveis. Uma governação “cristalina” não é aquela que “vive” na praça pública. Por absurdo, podemos imaginar o que seria um mundo e uma governação ao “estilo Assange”: teríamos os governantes e os seus agentes permanentemente nos média a prestarem contas e a explicarem as suas decisões; os jornalistas permanentemente nos ministérios consultando documentos ou assistindo a reuniões; um jornalista atrás de cada governante e seus agentes para que nada escapasse ao seu escrutínio; câmaras ocultas, ou à vista, em todos os locais onde governantes e seus agentes pudessem ser vistos…

Seria um mundo bigbrotherizado, um autêntico pesadelo. Haverá  de certeza outras maneiras de prosseguir ideais de transparência…

Esta entrada foi publicada em Comunicação e Política, Jornalismo, Sociedade. ligação permanente.

4 respostas a Um mundo ao “estilo Assange”

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  2. lixo eletronico diz:

    “Governantes e os seus agentes permanentemente na mídia a prestarem contas e a explicarem as suas decisões”

    Isso seria a real democracia, com o povo governando. E para que o povo possa governar, ele precisa de informação, para poder decidir se apoia cada decisão de seus representantes… seria um regime muito melhor do que o atual.

    Parabéns Assange por seus ideais.

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