O pensamento liberal e “pós-moderno” sobre a televisão pública

É pública e notória a inexistência de um pensamento estruturado e coerente por parte do Governo sobre o serviço público de rádio e televisão, como aliás, se prova pelas sucessivas declarações do primeiro-ministro e do ministro Miguel Relvas quando afirmam, o primeiro, que é preciso saber o que se entende por serviço público de televisão e o segundo, que é preciso aprofundar o conceito. Também as declarações do consultor do governo para as privatizações, António Borges, revelam a mesma ignorância com a agravante de ter sido ele a anunciar a concessão do serviço público de televisão a privados como o modelo mais “vantajoso” do ponto de vista das suas contas de merceeiro.

O debate sobre a televisão pública centra-se, entre nós, essencialmente nos seus custos, alegadamente excessivos, sendo esta a questão que mais claramente separa os que estão contra a existência do serviço público de televisão ou, os mais radicais, contra a sua prestação pelo Estado, e os que defendem que ele deve ser prestado pelo Estado através de uma empresa de capitais públicos. Mas o argumento dos custos do serviço público é uma cortina de fumo que esconde opções ideológicas não assumidas e por isso nunca discutidas. Quem está de boa-fé sabe que a RTP está em vias de sanear as suas finanças e tornar-se auto-sustentável, financiada, como as suas congéneres europeias, por uma contribuição paga pelos cidadãos. O que inspira os detractores do serviço público são, pois, questões meramente ideológicas, vagamente inspiradas no pensamento liberal e “pós-moderno”, porém sem reflexão e coerência.

O pensamento liberal e “pós-moderno” sobre a televisão pública, subjacente às posições de defensores da privatização ou da concessão do serviço público, assenta em algumas premissas: a primeira baseia-se no argumento de que os consumidores podem, hoje em dia, organizar e programar o que pretendem ver e ouvir não se justificando qualquer intervenção do Estado na televisão;  a segunda, ao contrário do modelo de televisão pública europeu que valoriza determinados produtos culturais, os quais devem ser protegidos, apoiados e regulados pelo Estado, defende que esses julgamentos são baseados em critérios tradicionais de gosto e de hierarquias culturais que já não têm validade, não existindo justificação plausível para que alguns produtos culturais continuem a ser apoiados. Decorre desta premissa, que não existindo hierarquia de valores não há razão para não dar ao público o que ele quer, pelo que não existe qualquer justificação para que algumas empresas de televisão tenham apoio do Estado e outras não.

A visão liberal e “pós-moderna” da televisão pública representa um salto ideológico que questiona  valores  e  fundamentos do modelo de televisão pública tal como o conhecemos na Europa e implica a perda total de apoio por parte do Estado. É uma visão que defende o consumismo sem “zonas” protegidas da procura do lucro como único objectivo. A fronteira tradicional entre “arte e cultura” e comércio desaparece, dando lugar a formas de expressão comercial da cultura. Trata-se de uma visão do sistema televisivo que torna ainda mais clara a importância da manutenção de “espaços” públicos preservados da procura desenfreada de lucro, onde possam ter acolhimento conteúdos e obras criativas não exclusivamente orientados para o mercado.

Próximos desta visão encontram-se também os que alegam que os desenvolvimentos tecnológicos, nomeadamente a multiplicação de canais associados ao digital e aos novos sistemas de distribuição, criaram condições para que a “televisão” possa ser recebida através de um grande número de canais de distribuição, não se justificando os apoios do  Estados ao serviço público.

Ora, a emergência nas últimas décadas de grandes conglomerados internacionais associados aos novos média tornaram mais premente a preservação da identidade e da cultura nacionais num mundo global. Cabe ao serviço público de televisão a protecção desses valores, que num mundo global se tornam ainda mais importantes.  De facto, a perda de referências regionais e nacionais é agravada pela globalização da indústria dos formatos e dos conteúdos, tornando cada vez mais difícil a criação regional ou nacional, como acontece com a exportação de  formatos uniformes emitidos sem um “toque” regional ou nacional, como os que encontramos na generalidade das televisões privadas, dos quais o Big Brother se tornou o símbolo por excelência.

Questionam também os críticos da televisão pública que esta se expanda para novas áreas como a Internet, serviços interactivos, etc., defendendo que abranja apenas “tarefas específicas de serviço público”, com a taxa paga pelos cidadãos distribuída pelos privados em troca de prestação de “tarefas” de serviço público. Ora, além da dificuldade de controlo e supervisão do serviço público que seria prestado nesse modelo, os  riscos de uso de fundos públicos para outros fins, a quebra da relação que existe no espírito dos cidadãos entre o pagamento da taxa  e o serviço público e a diluição da responsabilidade na prestação do próprio serviço público, seriam reais. O serviço público ficaria acantonado em guetos, perdido no meio de grelhas de programas sem coerência nem identidade.

Oposta à visão liberal e “pós-moderna” de uma televisão baseada no lucro e numa cultura de consumismo vazia dos valores e dos princípios que estruturam a sociedade europeia e ocidental, encontra-se a visão histórica que encara a televisão pública não como uma peça entre outras do sistema mediático mas como uma forma de estruturar a cultura e os valores pelos quais se regem e preservam a cidadania e a identidade nacional e europeia.

(Publicado hoje no jornal Público)

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