O Menino Jesus e o processo Face Oculta

Em Portugal é sempre difícil fazer uma discussão pública sobre qualquer tema sem que surjam acusações de partidarização, sobretudo se estão envolvidas figuras ligadas à política. A discussão pública das sentenças do processo Face Oculta e da condenação da ex-ministra Lurdes Rodrigues, aí estão para mostrar como a partidarite impregna qualquer discussão no nosso País. Mesmo assim, vale a pena insistir.

Entre nós, como todos sabemos, a “cunha” é uma instituição. O português “típico” gosta de interceder, recomendar, apoiar,  “meter uma cunha” a um amigo ou a um familiar que possa ser útil a outro alguém seu conhecido, familiar ou amigo, ou amigo do amigo. “Meter uma cunha” é (era) de certo modo um sinal de status social, de quem tinha amigos e era generoso. Basta ler Eça, Ramalho e  outros para entender isso.

Todos conhecemos alguém  que foi útil a outrem através de  uma recomendação, um “pedido”, feito directamente ou escrito numa carta, ou num simples bilhete ou  num telefonema. Também sabemos que é hábito português no natal ou no  aniversário dar e receber  presentes de valor variável consoante as posses de quem dá e a posição familiar, social, etc. de quem recebe. Os mais organizados fazem até listas de presentes. E se alguém foi útil e se disponibilizou a ajudar um amigo ou um familiar é certo que este  retribuirá com um presente pelo Natal ou pelo aniversário como prova de reconhecimento ou amizade. Costuma chamar-se a isso: “ter uma atenção”.

Nos costumes portugueses tudo isso é sinal de boa educação, deferência, protocolo, etc.. Por isso é que as empresas presenteiam alguns clientes especiais e vice-versa; que pacientes têm “uma atenção” para com o seu médico;  empregados para com um chefe ou um patrão “especial” e vice-versa. E por aí adiante.

Na política e na administração pública acontece o mesmo. Os presidentes da República recebem imensos presentes no natal e estou certa que também primeiros-ministros e ministros os recebem, para não descer mais na hierarquia do Estado. Nem todos ficarão para o Estado porque ninguém pensa (ou pensava) que por  ficar com eles poderia ser acusado de crime.

Também às redacções dos órgãos de comunicação social, pelo menos há alguns anos,  chegavam presentes pelo natal. E mesmo fora dessa época sabemos que havia e há outro tipo de presentes (viagens, etc.) que chegam aos jornalistas.

Acontece que  muitos destes costumes, que se enraizaram nos hábitos sociais dos portugueses, são afinal maus hábitos e podem mesmo ser crime de tráfico de influência ou até uma forma de corrupção.

Ler o acórdão do Face Oculta ajuda a perceber porque é que o Face Oculta é um fresco da sociedade portuguesa: as prendas e  as listas de natal do sucateiro, os amigos que engendrou e corrompeu, o ex-político que recebia “pedidos” de amigos e os recomendava a terceiros. E as prendas que todos recebiam no natal.

Mal sabia o Menino Jesus no que veio a dar o seu aniversário natalício. Que má ideia os camelos terem-lhe levado presentes!

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Uma resposta a O Menino Jesus e o processo Face Oculta

  1. J. Madeira diz:

    Para além da falta de leitura dos clássicos, muitos dos nossos juízes, embora alguns usem
    a expressão “experiência de vida”, pecam exactamente, por falta dessa vivência e do conhe-
    cimento da realidade das actividades económicas! Resta ser as instâncias superiores a ter
    que corrigir essa forte pulsão que se vive nos tribunais!!!

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